Carta ao Ministro
(fonte: https://sites.google.com/site/leigrionacional/carta-ao)
| A lei Griô é aprovada como uma das 32  propostas prioritárias de governo na conferência nacional de cultura, discussão  que encaminhou 347 propostas nacionais envolvendo 2000 representantes em todo o  país. Segue abaixo a carta do observador convidado pelo Ministro para contar o  que viu e viveu na conferência e diante da proposta da lei  griô. "Em todo o evento, ninguém cantou mais  canções do que os griôs, ninguém protestou mais do que os griôs,  ninguém articulou mais do que os griôs, com suas reivindicações de leis  específicas e possível adaptação da Constituição brasileira aos ideais  griôs. Ave! Digo, Axé! ... Desculpe a prosa espichada, senhor  Ministro, mas foi tudo para dizer que tenho, assim, esse pé na senzala, o que me  dá o direito de ser griô, quilombola, mestre de congada, cantador de  pagode ou presidente da Fundação Palmares. Como sou modesto, quero apenas  ser “afro-descendente” e colocar em um quadro emoldurado, bem na sala de  visitas, próximo do retrato do Coração de Jesus, o meu diploma de  griô." Assina: Rosemberg  Cariry – o observador de eventos do MinC  Veja carta abaixo na  íntegra II CONFERÊNCIA DE CULTURA  – ANOTAÇÕES DE UM “OBSERVADOR”  Exmo. Sr. Ministro da  Cultura, Juca Ferreira, Agradeço o convite que me  foi feito, na qualidade de “observador”, para participar do II Conferência  Nacional de Cultura, ocorrida de 11 a 14 de março de 2010, nas instalações  high tech do Centro de Convenções Brasil 21, em Brasília. Cumpro  aqui minha função e dou conta de tudo quanto observei, fazendo uso dos cinco  sentidos, da razão cartesiana, de um punhado de intuição e de muita boa vontade.   Não vou contar aqui dos  atropelos iniciais, dos funcionários do Brasil 21, seguranças bem  nutridos e bem jeitosas moças, todas vestidas de preto, como se tratasse de uma  funerária. Tratava-se de uma festa mais alegre e cheia de diversidade, conforme  nos coube observar.   O que mais me chamou a  atenção foram as cores, os suores, as texturas e os matizes de peles, a “muvuca”  dos sons e os sabores escondidos em farnéis e bolsas. Vi um Brasil que nunca  vira antes, de gente que habita todos os confins, do pantanal aos pampas, das  florestas amazônicas às caatingas nordestinas, dos cerrados do planalto central  aos litorais atlânticos, das serras aos chapadões, das dunas do Saara-Ceará aos  manguezais do Maranhão. Vi um Brasil plural e multiétnico, feito de negras de  perfis helênicos, de sararás de lábios grossos e narizes chatos, de  índios-índios, de índios de olhos azuis, de índios indo-europeus, de brancas de  cabelos negros como a asa da graúna e lábios doces como o mel da jati, de  japonesinhas com cocares multicoloridos que mais pareciam índias, de cafuzos  assumindo a nova condição cigana, de “afro-descendentes” quilombolas de cabelos  pintados de louro, como os “afro-americanos” do Harlem, de morenos desabusados e  mulatas de traiçoeiros olhos verdes. Tudo estava em trânsito. E o que era  cantador de viola virou griô, e o que era mulato virou quilombola,  e o que era caboclo virou índio, e o que era índio virou branco, e  o que era “afro-descendente” virou loiro, e o que era loiro vestia-se  como “afro-descendente” dos afoxés da Bahia e trazia no pescoço os  cordões de patuás. E Deus salve todos nós!  Como se não bastasse essa  mistura capaz de acabar de vez com o juízo de Deus, percebi um fluxo de  migrações inter-étnicas e interculturais de tal forma que fui logo me  identificando  com as propostas de algumas nações indígenas do Amazonas e do  Nordeste. Liguei-me a um grupo de Pankaruru do Pernambuco e me anunciei como  descendente dos Cariri. Minha avó Perpétua foi uma cabocla Cariús, descendente  da guerreira nação. Fui aceito, comprei um cocar e realizei meu sonho de  infância. Desde pequeno, lá na cidadezinha de Farias Brito, quando eu via os  filmes de caubóis, sonhava em ser índio... Apache, se possível. Eu queria ser  Apache, como Jerônimo. Aqui peço desculpas, é que eu ainda não conhecia a saga  de Raoni, de Juruna, de Anhamun, de Sapé e de Macunaíma, heróis da nossa gente.  Agora que conheço, quero mesmo é ser índio brasileiro. Neste encontro com muitas  tribos, terminei sendo identificado como um Urubu-Caapor, pelas cores da penas  do cocar que eu acabara de comprar, o que muito me orgulhou (também). O nosso  líder, aquele que falava em nome dos índios tinha um perfil de imigrante  ucraniano e falava Nheengatu, com pesado sotaque alemão. Insisto, o que  vale no homem são as ideias e o caráter. O homem defendeu nossas bandeiras muito  bem, e nós tocamos nossas flautas. Depois, fizemos soar as nossas caixas de  guerra. Somos todos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, na  Amazônia brasileira.  Outra coisa que achei  interessante, senhor Ministro, foi o movimento do griôs brasileiros.  Responsáveis pela transmissão das tradições orais das tribos na África do Norte,  os griôs iam de aldeia em aldeia, contando e cantando as linhagens dos  reis, guerras antepassadas e visões do futuro. No Brasil, as manifestações mais  próximas dos griôs africanos seriam um mistura de contadores de  história com os violeiros, os cantadores ambulantes e os cegos de feira do  Nordeste brasileiro. Eu ouvi falar em griô, pela primeira vez, na Europa,  reinventado pelo multiculturalismo francês. Lembro-me deste conceito  estrangeiro, quando, novidadeiros, lançamos o projeto “Mestres e Guardiões  dos Saberes Populares”, em 1996, no Crato-Ce, e realizamos o “Festival  Internacional de Repentistas e Trovadores”, em 2002, no sertão central do  Ceará. Na apresentação deste evento escrevi:  “Nos sertões do Nordeste  brasileiro deu-se um encontro de mundos -nações, povos e culturas se  enfrentaram,  misturaram-se e geraram a cal que alicerçou o que hoje poderíamos  chamar de cultura nacional. Os sertões são herdeiros das principais vertentes  culturais do Ocidente, notadamente das culturas ibéricas, magrebinas,  mediterrâneas, africanas, afro-brasileiras e ameríndias. Nos sertões,  através dos século em que foram construídos destinos e história, surgiram os  gênios das raças, as antenas do inconsciente coletivo - os primeiros trovadores,  cantadores e violeiros;  herdeiros dos bardos gregos, dos regueifeiros galegos,  dos trovadores portugueses, dos poetas provençais, dos aboiadores árabes, dos  griôs africanos, dos improvisadores tapuias. O universo fascinante e mágico dos  cantadores e repentistas fecundou todas as artes do Brasil, e não houve um só  movimento musical, do baião à tropicália, da MPB à música erudita, do rock ao  hip-hop, que não tenha bebido na inesgotável fonte da cantoria,daviola  sertenajea, do pandeiro e do ganzá”.   O que não sabíamos  (naquela época) é que o conceito endógeno de griô, antropofagicamente  digerido, se ampliaria tanto como uma espécie de guarda-chuva que tudo abriga:  de recitadores de versos de feira a pai de santo, de mestre de cacumbi a tocares  de zambê, de condutores de mirações da Ayuasca a filha de santo dos terreiros de  negros de Minas.  Testemunhei um “botador de bonecos” do interior do Ceará com  sua nova carteirinha de griô, orgulhoso que tava danado de sua condição e  pertencimento a um grupo identitário.  Em todo o evento, ninguém cantou mais  canções do que os griôs, ninguém protestou mais do que os griôs,  ninguém articulou mais do que os griôs, com suas reivindicações de leis  específicas e possível adaptação da Constituição brasileira aos ideais  griôs. Ave! Digo, Axé! Roupas de griôs, diretamente importadas do  Quênia e do Mali, custavam cinquenta reais, mas tínhamos também as de trinta e  vinte e cinco reais para os griôs mais pobres. Pensei em comprar uma de  15 reais, mais fraquinha, menos colorida, mas de maior possibilidade para as  minhas poupanças de poeta cordelista e cineasta figural. Terminei comprando  (fiquei liso) para presentear o meu amigo Oswald Barroso, teatrólogo, poeta,  pesquisador da cultura popular e, de agora em diante, verdadeiro griô.  Para ele, comprei também um turbante afro-muçulmano-brasileiro, baratinho,  apenas oito reais. Cor de ouro, ficará bem com os seus cabelos brancos. Espero  que ele faça, a partir de agora, em suas aulas espetáculos (ao modo de Ariano  Suassuna), explicações tão convincentes como a que ouvi de um legítimo  griô baiano, afro-descendente quase 100% puro, que explicou toda a  linhagem dos griôs baianos desde o século XVI até a primeira década do  século XXI, onde se encontra com a pós-modernidade e se reinventa nos blocos e  nos trios elétricos da Bahia, com a bênção de Gilberto Gil. Fiquei convencido e  comovido, embora goste mais do visual afro-tarzan da Timbalada de  Carlinhos Brown.  Deixando de lado a  complexidade étnica brasileira, capaz de acabar de vez com o juízo de Deus, abri  os meus ouvidos e entrei em transe com a multissinfonia de sons e de ritmos. A  bem da verdade,  achei que o jovem e “bronzeado” carioca, que tentava improvisar  ao som de um pandeiro, não se saiu muito bem e quase nunca conseguia rimar. Um  dia, ele chega lá e vira Manezinho de Araújo ou um Jackson do Pandeiro, questão  de tempo e de dedicação. Deus ajuda, e meu Padim Ciço dá um empurrãozinho, já  que se trata de coisas do Nordeste. Seu Zé do Pife, brasiliense de São José do  Egito, tocava um baião apimentado, e seus olhos se divertiam com os corpos bem  desenhados de duas loiras cariocas (bem malhadas) que sambavam e se requebravam  para alegria de negros (perdão, digo: “afro-descendentes”), brancos, mulatos,  morenos, amarelos, mestiços e sararás. O reinado das cariocas foi logo derrotado  por sete baianas que, requebrando as cadeiras, deixaram os mesmos  “afro-descendentes”, brancos, mulatos, morenos, amarelos, mestiços e sararás,  cheios de desejos inconfessáveis, em uma reunião de caráter eminentemente  cultural como esta. Um desassossego que me levou à conclusão de que, nesses  assuntos mais profundos, o que menos importa é a cor da pele. Se um atacava de  berimbau, outro arranhava uma viola. Enquanto um chorava um amor perdido no  realejo, outro arriscava uma curraleira ou mesmo um bolero de Waldick Soriano.  Dois ou três paulistas, estudantes da USP, ensinavam Bossa Nova a três  brincantes do guerreiro alagoano. O canto triste de um índio, acompanhado pelo  maracá, tocou o coração de uma alemãzinha romântica, de Santa Catarina, que,  deixando de lado todos os preconceitos, resolveu “ficar” com o jovem mancebo  Xavante, que insistia em soprar a tristeza da canção na sua flauta de bambu. Se  tudo isto tinha, muito mais coisas nós vimos: tambor de crioula, grupo de  carimbó, banda cabaçal, roda de coco, fandango gaúcho, samba de cumbuca, roda de  Nau Catarineta, caretas de Potengi, ponto de macumba e linha de caboclo de  catimbó, entre centenas de outros costumes, ritmos, danças e modas de viola.    A tudo vi. De tudo ouvi.  Até mesmo um tango, senhor Ministro, durante a plenária. Casais de jovens  brasilienses, vestidos em paletós de gangsteres portenhos e meninas fatais de  vestidos longos, lascados na lateral, deram um aparente tom de tragédia ao que  era festa e brincadeira. Fica bem dançar tango em Brasília, depois de tantos  escândalos e republicanas tragédias. O mesmo tango serviu para que uns dançassem  hip-hop, que outros atacassem de xaxado e dois ou três ensaiaram danças pouco  definidas, mas que me pareceram uma mistura de rituais zulus com o rock da  década de cinquenta. Já no último dia, enquanto se votavam as propostas  prioritárias para comemorar vitórias, alguém entoou um aboio tão belo e profundo  que é como se os oitocentos anos de dominação árabe na península ibérica se  fizessem ali presentes pela voz deste vaqueiro nordestino, nomeado delegado da  Associação dos Vaqueiros Nordestinos para as coisas da cultura e assuntos  exteriores. A cada proposta aprovada, os gritos tribais reinventados na  urbanidade tardia, as vozes profundas das almas ancestrais, entrecortadas com  vaias, palmas, urras ecoavam no grande salão, e os sorrisos que se desprendiam  da boca iam se arranchar nas almas, feito anjinhos barrocos.  Não pense que essas cores  e essas raças, essas profusões de ritmos e esses sons não tinham cheiro. Pois  tinham sim, de suores da floresta a securas dos sertões, de hálitos perfumados  de morenas aos “bafos-de-onça” de quem fugira para tomar uma pinga (garrafa  escondida na mochila ou mesmo para queimar um baseado, na intimidade do  banheiro). Do meu lado, tinha uma cabocla do Pará, tão bela e tão perfumada com  as essências da floresta, que eu fiquei para sempre com este perfume na alma e  com as promessas dos seus olhos se balançando na rede na varanda dos meus olhos.  Pensei logo em Iracema, a virgem dos lábios de mel e confesso, senhor Ministro,  que fui politicamente incorreto e pensei um monte de safadezas. Que Deus, me  perdoe, pagarei todos os pecados, não por obras, mas por imaginação. Na próxima  romaria que farei para o Juazeiro do Norte, em cima de um caminhão  Pau-de-arara, com promessas a serem pagas a meu Santo Padim Ciço, que  tudo vê. Santo bom, porque do povo, que as fraquezas dos homens compreende e  perdoa.  No almoço, tinha aquelas  comidas esquisitas, feitas de venenos e isopor, com um copo de coca-cola ou de  uma tinta amarela que dizia ser laranja. Isto não é motivo para pensar que o  povo brasileiro não resiste. O povo resiste, sim. Sempre aparecia, como por  milagre, tirado de dentro de alforjes, mochilas e malas, um pedaço de rapadura  com um punhado de farinha, um guisado de carne do sol com cebola e macaxeira, um  doce de casca de laranja da terra, pão de mucunã com geléia de pimenta, um  tijolo de buriti, um suco de cupuaçu dentro de garrafas de plástico e a  embriaguez do cauim, encantada dentro de uma cabeça, que ainda guardava o doce  aroma do mel.    Ao final, foram aprovadas  32 propostas prioritárias, 132 propostas secundárias, 368 propostas essenciais e  175 propostas importantes. Houve algum ruído, logo superado, pois a festa  democrática tudo redime. Explico melhor o que houve: ao ser lido o documento  final, com a vossa presença, senhor Ministro, os descendentes indígenas  vislumbraram o anúncio da Terra Sem Mal, os caboclos nordestinos o  Reino do Juremá, o seguidores das religiões orientais o Nirvana,  os católicos e os muçulmanos o Paraíso e os yahuasqueiros as Mirações  do Bem-Virá. Não importa essa aparente multiplicidade de visões, tudo isto  no conduz ao País de São Saruê, versão cabocla do país de Cocanha,  onde no leito dos rios corre leite e cujas beiradas são de cuscuz de milho  verde, salpicado com coco ralado e pedacinhos de queijo,  onde o dinheiro se  colhe nas árvores, menino já nasce aprendido  no ler, contar e medir, em tudo  sabido demais. E o sertão vai virar mar.  Um antropólogo francês  naturalizado brasileiro gritava: “vamos preservar os tesouros vivos da  cultura popular como quem preserva uma relíquia em um sacrário, defendo-a das  influências estrangeiras”. Com a fala daquele homem, pensei logo numa santa  cruzada, numa espécie de guerra santa, no Al Qaeda e na luta contra o  terrorismo que o presidente Obama, prêmio Nobel da Paz, continua alimentando,  contra todas as expectativas do mundo.  Mas não, o tal antropólogo francês ou  francês naturalizado não falava deste tipo de guerra contra o terrorismo,  conclamava o povo a preservar sua cultura - o que todos os dias se transforma, o  que, por natureza, está sempre em trânsito, o que nunca tem fim porque nunca foi  concluído. Missão impossível. Lembrei de Paulo Emílio Salles Gomes, quando  afirmou “Não somos nem europeus, nem americanos do norte, mas privados de  cultura original, nada para nós é estrangeiro, pois tudo o é”.  Tive vontade  de dizer ao “sabichão” francês: “Aqui tudo se contamina, se interpenetra e se  transforma. Espelhos quebrados, somos reflexos das nossas sete mil caras e das  nossas setenta mil almas”. Talvez esse antropólogo francês-brasileiro não  tivesse ainda compreendido bem a ideia brasileiríssima da antropofagia, não no  sentido dado pelo tardio modernismo paulista, mas no sentido mais profundo dado  pelos Cariris, índios tapuias do Nordeste, que devoravam seus mortos para não  mais sentirem nem tristezas nem saudades. Com os mortos comungados, como fazem  os cristãos devorando a carne do seu Deus, em forma de pão, e bebendo o seu  sangue, transubstanciado em vinho, os Cariris guardavam os seus parentes e entes  queridos dentro dos seus corpos e das suas almas, podendo assim reatiçar o  sentido da festa e da continuidade da vida, “sem tristezas e sem saudades”.    A II Conferência  Nacional da Cultura, neste sentido, foi uma festa de comunhão, de ritual  devorador de tradições e de culturas em trânsito, das memórias do futuro e de  previsões do passado, de carnavalização do inconsciente coletivo e de desmontes  da razão, de estado permanente de devir dos brincantes em busca do paraíso.  Somos todos tripulantes das naus dos loucos medievais navegando em mares  contemporâneos, dos cavalos dos orixás em transe, dos Zumbis imaginários que  povoam a nossa negritude, do Pajé Seta Branca e suas falanges astrais baixando  no grande circo do Vale do Amanhecer. Parafraseando Arquimedes, eu diria:  “Dai-me um povo como o brasileiro, e eu reinvento o mundo”.  Os paulistas, associados à  imagem dos bandeirantes predadores de civilizações, sofreram, de início, certa  resistência por parte do Brasil profundo, ou seja, das outras regiões, que os  identificaram pelos narizes empinados etc. Conversa vai e conversa vem,  terminaram por se convencer de que São Paulo é a maior Capital Nordestina  do Brasil e de que não existe paulista, o que existe é brasileiro que faz a vida  em São Paulo e o “ser paulistano” reinventa. Foi um alívio chegarem a esta  conclusão. Ouviu-se em uníssono: “Ah! Bom!...”. Os paulistas foram  aceitos na comunidade brasileira e agora se orgulham de também serem  nordestinos.  Enquanto isto, Chico  César, de Catolé do Rocha, dava autógrafos para duas chinesas, dois acreanos,  quatro bolivianos, três lituanos, sete gaúchos, quatorze armênios, quatro  Xocó-Cariri e 42 coreanos, negociantes da Feira do Paraguai (a Feira dos  Importados), aqui mesmo em Brasília. Zeca Baleiro fez um discurso semi-erudito e  depois rodou a baiana junto com um boi de orquestra que serpenteava pelos  labirintos do centro de convenções. Boi de sotaque zabumba com uma toada que  fazia as dançarinas se desfazerem em movimentos sensuais. Mais bonito e sensual  só o mesmo o Cacuriá de Dona Tetê, com seu ritmo quente, com seu erotismo  equatorial, e dengos de coxas e seios de moças brincantes que mexem com o juízo  das gentes, nestes tempos de pan e de transexualidade.  Por falar em sexualidade,  senhor Ministro, outro aspecto importante, dentro da conferência, foi a  organização dos homossexuais, lésbicas, simpatizantes e outras tendências  contemporâneas. Unidos em blocos, belos e belas, na verdade radiantes, eles  reivindicavam emendas parlamentares que assegurassem o desenvolvimento das  culturas pansexuais, intersexuais, megassexuais e suprassexuais. Vi um jovem  intelectual, homossexual assumido e politicamente correto, lépido e faceiro,  candidato a cineasta, assíduo leitor de Foucault e de Deleuze, tentar convencer  um cantador de viola de São José do Egito, tipo sertanejo, forte, moreno e de  exótica beleza, a assumir o seu lado gay. Depois de ouvir o bem articulado  discurso, o cantador perguntou: “o senhor está querendo que eu seja baitola,  é?!”. O jovem intelectual insistiu, corrigindo aquela expressão  politicamente incorreta: “Não, estou falando de cultura gay, algo muito mais  complexo e profundo”. O cantador de viola se interessou pela conversa e,  deixando de lado as questões de fundo semântico, antropológico e psicanalítico,  perguntou: “E é bom?”. O jovem intelectual também abandonou o discurso  acadêmico e, pegando a “deixa”, deu o veredito final: “É ótimo”. Não sei  no que aquele colóquio resultou. Vai ver que o cantador abandonou a família, a  mulher, dona Genoveva e os dez filhos (Francisco, Francinaldo, Francélia,  Francir, Francimar, Fátima, Frazé, Franluz, Francorli e Francivan), e fugiu com  o jovem intelectual para o Rio de janeiro, onde hoje compõe a trilha sonora  minimalista de um curta-metragem, cheio de metalinguagens e influências de Wong  Kar-Wa, viabilizado por um edital da Secretaria do Audiovisual do MinC. Estamos  evoluindo.    Este lado, vamos dizer  assim, mais sexualizado da cultura brasileira, fluiu bonito, sem preconceitos e  sem barreiras raciais, ideológicas e religiosas. Vi mesmo muitos militantes do  PT, do PC do B, PSOL e do PV, erguerem as bandeiras da pansexualidade tropical.  Os índios ensinaram para os antigos marinheiros, exilados, padres, poetas,  seresteiros que não existe pecado abaixo da linha do Equador e que a “culpa” é  uma doença cristã.  Essa liberação da libido atravessa todas as artes e todas as  manifestações da cultura. Arte é sexo condensado, já dizia Freud. Se não disse,  deveria ter dito, mesmo que isto tivesse antecipado o seu o rompimento  traumático com Gustav Jung.  Teve especial destaque,  nesta pós-moderna conferência, as manifestações da moda e dos seus elegantes  delegados. Um estilista conterrâneo meu, de Quixeramobim, terra de nascimento de  Antonio Conselheiro, contou-me a sua original carreira profissional. Depois de  ter estagiado em Paris, trabalhado em Berlim, Praga, São Petersburgo e São  Paulo, voltou para Quixeramobim e abriu uma butique de roupas pós-contemporânea  chamada Samarkand. Arrasou. Um sucesso entre a pequena burguesia local e  as meninas que têm avós aposentados pelo FUNRURAL. Pois bem, para demonstrar a  sua criatividade este talentoso estilista do sertão do Ceará improvisou uma  roupa com cartazes, folders, panfletos e outros pedaços de florestas salpicados  de tinta gráfica. Na boca, colocou um pedaço de papel, ao modo de uma mordaça.  Estaria ele protestando contra o abandono da moda no sertão central do Ceará? É  bem possível, por vias das dúvidas, fui logo fazer lobby com alguns  grupos de macumbeiros, de congadeiros, de violeiros, de dançarinas da dança do  ventre e de professores da USP, para que fosse aprovada como prioritária a  proposta de lei “Luxo para todos”, a ser enviada ao Congresso Nacional. A ideia  é bem generosa e propõe que todos os grupos de tradições, aldeamentos indígenas  e comunidades quilombolas, caiçaras e ciganas, tenham os seus estilistas e que  sejam contratados, com preferência, aqueles que fizeram estágio em Paris. O  estilista cearense argumentava, com muita propriedade: “Se os índios de José  de Alencar tinham medo de morrer sem ver Paris e se comportavam com verdadeiros  cavalheiros da Belle Époque, porque é que os brincantes de folias não  podem ter roupas tão bonitas e ousadas de fazer inveja a Gabrielle Coco Chanel,  Hubert de Givenchy, Christian Dior, Yves Saint Laurent, Pierre Cardin, Giorgio  Armani e Gianni Versace?”. Sei que toda unanimidade é burra, mas  fomos unânimes e apoiamos o encaminhamento da reivindicação. Concordei com o  conterrâneo cearense e também com Maiakovsky, quando diz: “Gente é para  brilhar!”.  É justo que os brincantes possam brilhar, ainda mais. “Quem  gosta de pobreza é intelectual”, já filosofara Joãozinho Trinta, maranhense  de São Luiz - a Atenas Brasileira, que se fez guru do carnaval carioca. Aqui  somos todos reis: reis do reisado de congo, reis da panelada, reis das  autopeças, reis da boca do Lixo, reis do futebol, reis do caldo de cana... Basta  olhar as placas dos comércios populares nas periferias dos grandes centros  urbanos. Somos republicanos, mas gostamos mesmo é da monarquia que tem mais  brilho, tem mais festa, aluá e atabaques.  Tudo que aqui conto,  senhor Ministro, foi apenas um pouco do que observei do muito que aconteceu,  cumprindo fielmente a minha nomeação como “observador de eventos”, nova, honrosa  e republicana função. Agradeço a V. Sª, pelo convite, pela oportunidade desta  convivência continental e cósmica com aos povos do mundo que se reinventam no  Brasil (mil povos, mil culturas e mil e uma heranças de humanidades). Com vossa  permissão, faço uma confissão íntima, como fez Santo Agostinho: “Emocionei-me  várias vezes. Em alguns momentos, disfarcei as lágrimas. Sou mesmo sentimental.  Não vou mais esconder: gosto das guarânias de Cascatinha e Inhaha, dos boleros  de Evaldo Gouveia e das baladas de Roberto Carlos”.  Ser índio por dois dias e  ser delegado com direito a voz no grupo das grandes nações indígenas  brasileiras, onde, juntos com os morubixabas, defendi a multiculturalidade e a  preservação das 184 línguas indígenas vivas ainda existentes no País foi para  mim uma felicidade. Em toda minha história, do alto dos meus 57 anos, 35 deles  de militância artística, talvez tenha sido esta a minha maior vitória. Estou  orgulhoso que estou danado. Não me tenha como abusado, mas vou logo avisando, só  aceito o convite para ser novamente “observador”, na III Conferência Nacional  da Cultura, com uma condição: dessa vez, quero voltar como  “afro-descendente” e, se possível, com diploma de griô. A meu favor,  senhor Ministro, para dar maior credibilidade a minha reivindicação, confesso um  segredo de família: minha tataravó, judia que se fez cristã nova, casada com um  libanês, encantou-se com um “afro-descendente”, um talentoso e robusto cantador  de coco de embolada, que passou pelos sertões dos Inhamuns, lá por meados de  1835-38. Os anais das memórias familiares não precisam bem o ano exato.      Pois bem, este  “afro-descendente’ de nome Cosme Bento, ex-escravo, carregou minha tataravó e,  no Maranhão, aliou-se às armas e à revolta do vaqueiro Raimundo Gomes, dando  início à Revolta da Balaiada, de tão gloriosa memória, onde foi portador  do honroso título de Imperador das Liberdades Bem-Te-Vis. Na mesma época,  para lutar com o povo em armas, foi nomeado Comandante das Armas da Província o  coronel Luiz Alves de Lima e Silva, que terminou vencendo os revoltosos,  tratando-os a ferro e fogo, ganhando, por este feito, o título de nobreza de  Duque de Caixas e a alcunha de “o pacificador”. O Imperador Cosme  Bento, responsável pela leve morenice da minha família, foi enforcado, e minha  avó ficou sozinha, em um quilombo, no interior do Maranhão, até que seu pai, o  coronel Alexandre de Moura, homem de fortuna, mas muito temente a Deus, mandou  buscá-la e ajudou-a a criar o bonito “mulatinho”, pois teve que cumprir promessa  que a sua esposa, Dona Fideralina de Gusmão Feitosa de Moura, fizera ao italiano  Frei Vital de Frescarolo, que já neste tempo andava fazendo milagres pelo  sertão. Depois o “mulatinho” cresceu, fez-se um garboso mancebo e deixou vasta  “afro-descendência” entre brancas, índias, negras, mulatas e caboclas da região,  aumentando em muito o patrimônio da família, até que chegou a grande seca de  1888, que deixou sua vasta família na penúria, e muitos foram os que migraram  para as florestas da Amazônia, onde se fizeram seringueiros, garimpeiros,  comerciantes e vendedores de escravos índios e migrantes nordestinos. Alguns  entraram no cangaço, outros na política, alguns foram ser padres, e alguns  poucos, por falta de opção, entraram no exército e terminaram na Guerra do  Paraguai, participando daquela desgraceira toda. Que Deus tenha piedade das suas  almas.    Desculpe a prosa  espichada, senhor Ministro, mas foi tudo para dizer que tenho, assim, esse pé na  senzala, o que me dá o direito de ser griô, quilombola, mestre de  congada, cantador de pagode ou presidente da Fundação Palmares. Como sou  modesto, quero apenas ser “afro-descendente” e colocar em um quadro emoldurado,  bem na sala de visitas, próximo do retrato do Coração de Jesus, o meu diploma de  griô. Se não aceitarem a minha leve morenice, eu pinto o meu  rosto, com fuligem de lamparina misturada com óleo de linhaça, como fazem os  sararás, caboclos e branquelos desenxabidos que se cobrem de falso negrume para  brincarem no Maracatu do Ceará. Quero fazer inveja ao mestre Sebastião  Revardière, do Reisado de Congo de Missão Velha, que nunca passou de branco, um  mero cara pálida, descendente da nobreza europeia, cujos antepassados na  Revolução Francesa caíram em desgraça com os jacobinos, foi exilado para o  Brasil e se estabeleceram como vendedores de pão de coco com refresco de Bacuri,  em São Luiz do Maranhão. O mestre Sebastião Revardière só tem mesmo para  ostentar e alimentar o seu orgulho de nobreza decadente o seu diploma de  “tesouro cultural”, dado pela Secretaria de Cultura do Ceará.   Antigamente, ele era “mestre”, mas agora virou “tesouro vivo”. A sua  mulher, Dona Isabel, uma “afro-descendente” de corpo roliço e espírito  desabusado, abandonou o reisado, com medo de ser nomeada “tesoura”, o que  só serviria mesmo de mangação para o povo. Quem sabe, o Américo Córdula,  secretário da Diversidade Cultural e Cidadania, possa lhe oferecer o  título de “grioa”. É mesmo bonito, talvez ela aceite. Da minha parte, já  aceitei, estou aprendendo línguas africanas e vou fazer meu discurso de  agradecimento em iorubá ou, se preferirem, em francês, que é língua que, apesar  de não estar na moda, ainda guarda algum charme e é de onde vem o multicultural  nome “griot”.  Au Revoir, senhor Ministro. Assina: Rosemberg  Cariry – o observador de eventos do MinC Brasília, 15 de março de  2010  | 
 


 
 
 
 
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