Yalorixá denuncia agressão em
assentamento na Bahia
Débora Alcântara
De Salvador (BA)
(Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4772929-EI6578,00-Yalorixa+denuncia+agressao+em+assentamento+na+Bahia.html ) - acessado em 07/10/2010, às 22:22h
Policiais da 70ª CIPM (Companhia Independente da Polícia Militar de Ilhéus), no Sul do Estado, invadiram o assentamento Dom Helder Câmara, que fica no distrito de Banco do Pedro, no último dia 23 de outubro, e agrediram Bernadete de Souza, 42 anos, líder regional dos Sem Terra, sob o pretexto de que buscavam drogas e armas que estariam no assentamento. Ao protestar contra a presença dos oficiais, a assentada foi arrastada pelos cabelos, jogada sobre um formigueiro e presa numa cela masculina durante horas.
A invasão do assentamento aconteceu por volta das 14 horas e foi testemunhada por 50 famílias. Os moradores consideraram a ação "racista, intolerante e machista", principalmente por se tratar de uma mulher negra, sacerdotisa de matriz africana, assentada de reforma agrária e líder das famílias que compõem o Assentamento Dom Helder Câmara.
No momento em que os policiais chegaram ao local, acontecia a festa no Terreiro Ylê Axé Odé Omí Uá, o templo do assentamento. O ato religioso foi interrompido pela presença de oito agentes da 70ª CIPM que conduziam um jovem algemado, desconhecido pela comunidade.
"Sob o pretexto de apreender uma suposta carga de drogas e armas que estaria enterrada no local, os oficiais invadiram o assentamento e enquadraram homens, mulheres e crianças sob a mira de armamento pesado", disse Moacir Pinho, uma das lideranças do assentamento e marido de Bernadete. "Vocês têm algum mandado oficial? Foi o que eu perguntei a eles, porque o nosso assentamento é uma área que está sob custódia do Incra, é área federal", disse a líder Sem Terra e yalorixá (mãe-de-santo). Mas ela teve as mãos algemadas. "Foi nesse momento que Oxossi veio a mim", relatou.
"Incorporada pelo orixá", como descreve a yalorixá, ela foi arrastada pelos cabelos e jogada sobre um formigueiro pelos oficiais. Segundo os assentados, esses justificavam a agressão "para o satanás sair do corpo dela". "Quando ela estava tomada de formigas, diversos companheiros tentaram tirá-la de lá, mas um dos oficiais apontou o fuzil na cabeça de Bernadete e disse que atiraria caso alguém se aproximasse", disse Pinho. Ele afirma que, para conter a revolta dos integrantes do assentamento, foram atirados contra eles spray de pimenta. "Na multidão havia muitas crianças", lembra, revoltado.
Arrastada ainda pelos cabelos por 600 metros até a praça do distrito do Banco do Pedro, exposta ao olhar de todos os moradores, testemunhas do episódio, Bernadete, algemada, foi conduzida no fundo de camburão até a sede da companhia de polícia, em Ilhéus. Foi trancafiada numa cela masculina, presa com algema na grade, onde já havia um detento.
Incra não foi acionado
O superintendente regional em exercício do Incra, Marcos Nery, conta que em nenhum momento o órgão federal foi acionado pela Polícia Militar sobre a diligência no assentamento. "Estranhamos o que aconteceu, já que construímos, nos últimos anos, uma boa relação com a Polícia Militar, principalmente nos casos de reintegração de posse", disse o superintendente. "Acompanho o Assentamento Dom Hélder Câmara há muitos anos. Lá a presença de lideranças femininas é majoritária. Eles são muito organizados, politizados e disciplinados. Nunca ouvi falar de algum caso sobre envolvimento de membros dessa comunidade com atividades ilícitas", disse.
O comandante da 70ª CIPM, Daniel Riccio, a quem estão submetidos os agentes responsáveis pela diligência, afirmou que a ação "não foi ordenada, nem arbitrária", apenas "naturalmente policial". Ele garante que foi aberta uma sindicância para apurar a responsabilidade dos policiais envolvidos na ação. "Já informei a situação para meus superiores. Quero ressaltar que a operação não tinha nada a ver com os Sem Terra, nem com a religião de matriz africana. Mas só poderemos tirar mais conclusões depois do parecer sobre o assunto, que sai em 30 dias", anunciou.
Para o coordenador do Coletivo de Entidades Negras (CEN), Marcos Resende, o episódio do Assentamento Dom Hélder Câmara não é um fato isolado. "Isso demonstra a escalada dos atos de intolerância de grupos que estão arraigados no Estado", avalia. No episódio, ele ressalta, foi ferido o Artigo 5º da Constituição, que garante os preceitos do Estado laico. "Isso só aconteceu porque o alvo foi uma mulher negra, de religião de matriz africana e liderança de um acampamento Sem Terra", protestou.
O ativista do movimento negro e presidente da Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas da Bahia (ASFAP), Hamilton Borges, que acompanha o caso, diz que "a polícia não tem como contestar a materialidade do que aconteceu a Bernadete", como as marcas das agressões em seu corpo. Ele ainda afirmou que o próprio Boletim de Ocorrência (BO) feito pelos policiais da diligência, no qual a líder Sem Terra é acusada de desacato à autoridade, denuncia os atos abusivos dos oficiais. "A polícia ainda não mudou sua prática nesses 200 anos. Ela já foi criada combatendo quilombo, terra de pretos".
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